07 Junho 2008 - 00h00
Caminho das Estrelas. Fafá de Belém
'Já tive um aborto espontâneo por causa de uma notícia de jornal'
A cantora abre a alma: Conta que abortou, que chora com frequência, que vai comprar uma casa no Bairro Alto e fazer um disco de fado. No dia 10, canta MPB e fado no Teatro da Trindade, num espectáculo que será gravado em DVD
Depois de 22 anos a dar concertos frequentes em Portugal não teme gastar a sua imagem?
Corri este País todo. Conheço desde Freixo de Espada à Cinta a Castro Marim. O espectáculo ou é inteiro ou não é. Isso está a reduzir muito a minha vinda aqui, mas valoriza o espectáculo. Agora vejo a vida com o olhar sereno e sem a ansiedade de uma mulher com mais de 50 anos.
Sente que atingiu outro patamar?
O ano passado foi o lançamento do DVD que conta a minha história. Dois dias seguidos, os telejornais de todas as emissões de televisão do Brasil falaram disso.
Nesse DVD afirma: 'a elite incentiva o comércio fácil de música com falta de valor'. Pode comentar?
Os fabricantes de sabonetes e os que vendem bem esses sabonetes passaram a uma posição de prioridade nas editoras. Os sabonetes têm de fazer espuma, ter um bom perfume e alguns não deixam nem rasto na pele. A música tornou-se nisso.
Qual é o próximo passo para a sua carreira?
É pensar num disco para Portugal e a partir daqui para o Mundo. Quem sabe, talvez faça um DVD de fado?!
Fado com sotaque brasileiro?!
Já gravei Paulo Gonzo, Rui Veloso e quero cada vez mais fazer incidir o meu olhar plural. Quero fazer discos de Edu Lobo, de Milton Nascimento, de canções portuguesas contemporâneas.
Não é coisa a mais?
O Mundo está mudado e a música está a voltar ao seu lugar e não ao do marketing. Gastou-se tanto com marketing que se esvaziou a genuinidade. Hoje as editoras estão a tentar organizar carreiras e não produtos a ser descartados. A música está a passar por uma revolução.
Que revolução?
O olhar para dentro, o diferencial, o timbre vocal e de verso sonoro. Vejo com alegria a crise do mercado tradicional.
É sempre frontal e espontânea ou por vezes também é encenado?
Às vezes tenho necessidade de encenar até para colocar algumas pessoas no sítio.
Como é que explica que já tenha partido o pé esquerdo quatro vezes?
E o direito duas (risos). Acho que é por ser grande e só calçar o 35.
Considera-se mais sóbria ou mais delirante?
Absolutamente delirante (risos).
Porque é que chora com tanta frequência?
Emociono-me muito, as minhas gargalhadas são uma defesa. Tal como o meu pai, nunca me envergonhei por chorar.
Quando seu pai, seu Fifi, faleceu, colocou nos gira-discos ‘New York’ do Sinatra. As pessoas que estavam no velório ficaram chocadas. Por que é que fez isso?
Quis prestar-lhe essa homenagem.
No mesmo ano cantou para o Papa. O que é que isso representou?
No dia seguinte a ter cantado para o Papa foi diagnosticado cancro no pâncreas ao meu pai. Fui convidada para cantar para o Papa devido à minha coerência na caminhada democrática no Brasil: a coerência entre o meu discurso e a minha acção. Naquele dia, no Maracanã, não fui eu que estive lá a cantar. Senti-me um veículo.
Um veículo nas mãos de Deus?
De Deus e desse povo maravilhoso que é o brasileiro, que não desiste e que, pese as intempéries, está sempre com um sorriso.
Por essa altura, 1987, a sua vida andava muito conturbada...
Entre 85 e 88 tive muitos reversos na minha vida. O final de um casamento conturbado, o final de uma parceria profissional delicada e a morte de meu pai. No meio disso vim a Lisboa, fui ao programa do Carlos Cruz, e quando passei perto da catedral as pessoas cantavam o ‘Vermelho’. Deus põe-me à prova a todo o momento.
Por que é que reza e se benze sempre antes de entrar em palco?
Porque chamo-me Fátima, por Nossa Senhora de Fátima, e porque acredito que sem fé não se vai a lado nenhum. Peço permissão a todos os meus deuses, os permitidos e os não permitidos. Eles sempre me guiaram.
Quando cantou para o Papa houve quem não gostasse que tivesse transformado a ‘Ave Maria’ num samba.
A coisa foi mais complicada. Algumas carolas diziam que eu não podia cantar, outros perguntavam porquê ela e não outro.
Que outro?
Tantos (risos). A Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro foi impecável porque disse que eu era uma representante legítima da mulher brasileira, da sua luta, da sua coragem. Foi uma guerra.
'Dei muito murro em ponta de faca para chegar onde estou', disse-me certa vez.
Em 33 anos de carreira nunca me coloquei à disposição do que não fosse sincero e verdadeiro. Paga-se um tributo muito alto para se defender o que se acredita. Dei muito murro em ponta de faca. Sofri, mas acredito que ainda terei que dar muitos mais.
Também disse que, se for preciso, vira a mesa.
E virei muitas vezes. Hoje viro menos porque estou numa altura da minha vida em que não é preciso provar mais nada. Neste momento, acredito que posso tudo.
Pode soar arrogante.
Mas não é. Posso tudo porque trilhei todos os caminhos, nunca negociei a minha alma, nunca me vendi a uma causa nem nunca cobrei para defender uma ideia.
Mas não foi fácil, por exemplo, assumir-se como 'a musa das eleições directas no Brasil'.
Cheguei a ser perseguida pelo Serviço Nacional de Segurança, sabiam tudo sobre mim, faziam relatórios da minha vida. Prefiro incomodar do que ficar sentada.
Essa perseguição chegou a ser traumática?
Passei quase dois anos sem trabalhar, fechavam-me as portas. Foi a primeira vez na vida que pedi dinheiro emprestado.
O que é que aconteceu?
Tinha uma sociedade que geria os meus lucros, eu assinava os documentos em branco, quando fui a ver devia mais do que tinha. Perdi tudo. Tinha duas possibilidades: ou ficava a reclamar ou arregaçava as mangas e recomeçava.
Confessou que sofreu um aborto. Quer contar pela primeira vez o que aconteceu?
Foi em 1998. Estava grávida e feliz da vida. Abortei por causa de um grande choque.
Choque?
Uma notícia de jornal mal educada e violenta.
O que dizia?
'Fafá de Belém vai ser mãe. Nem a filha acreditou. Será que ela sabe quem é o pai?' Não sou devassa, soubrincalhona, mas muito antiquada. Aquilo foi uma ofensa gravíssima à minha pessoa, ao meu namorado, à minha filha, à minha gravidez. Fiquei em choque. 24 horas depois perdi o bebé.
Qual é o seu maior sonho?
Devolver à Amazónia a sua face. Terminar a minha vida no Barco da Felicidade. Levar médicos, dentistas, curandeiros aos lugares recônditos e, claro, muita música, que ajuda a curar.
Convidou António Pedro Vasconcelos para fazer o filme da sua vida?
Com o olhar que ele tem, o olhar do drama sem pintas a mais, será um sucesso.
Foi o amigo comum, o Joaquim de Almeida, que vos apresentou?
O Joaquim indicou-me o filme ‘Jaime’, que diz ser a minha cara.
Como é que correu a sua participação na novela ‘Caminhos do Coração’?
Fiz a ‘Ana Luz’, a dona de um circo, uma mulher muito parecida comigo.
Parecida como?
Aos 15 anos largou a família e fugiu com um palhaço (risos).
SOU A PRÓPRIA TORRE DE BELÉM
Vai comprar uma casa em Portugal. Pode-se saber onde?
Tinha que ser no Bairro Alto. A minha filha tem 28 anos, está a fazer musicais, já organizou a vida dela, por isso já posso começar a dividir a minha entre Portugal e o Brasil. Vou começar a criar aqui, neste País que me alimenta a alma, o corpo e o coração. Não sei de ninguém do meu meio que seja tão ligado a Portugal como eu. Conheço muitas tascas, lugares sofisticados, palácios e becos deste País.
E o sangue português corre-lhe nas veias?
Misturo Porto, Castelo de Paiva, Viseu, Vouzela, Leça da Palmeira, Gaia, Açores e Lisboa. É muito louco. Eu sou a própria Torre de Belém (risos).
Torre de Belém?
Porque foi de lá que saiu tudo, porque representa os Descobrimentos e porque sou uma mulher sólida.
Por que é que gosta de tirar proveito dos seios com humor?
Porque foi a primeira coisa que me incomodou em mim. Tinha 12 anos, os seios grandes e volumosos e isso não era moda.
PERFIL
Maria de Fátima Palha de Figueiredo nasceu em Belém do Pará, a 9 de agosto de 1956. Teve o seu primeiro grande sucesso artístico em 1975 com a canção ‘Filho da Bahia’
José Manuel Simões
Fonte: correiodamanha.pt