Fazer arte por entre as ruínas
Visto de fora, o Tacheles parece ter sido bombardeado tanto pela guerra, como pela arte. A longa fachada e as arestas quebradas estão cobertas por graffiti e cartazes. O portão que dá acesso ao terreno das traseiras deixa adivinhar uma espécie de ferro velho.
Edifício arruinado do Tacheles, em Berlim
E é só mais de perto que se vê que esse ferro velho - restos de automóveis, motas, banheiras, rodas dentadas e mecanismos ferrugentos de utilidade incerta - é a matéria prima com que trabalham vários dos artistas da associação Tacheles. Presentemente, uma exposição ocupa o pátio enorme e lamacento - e é possível ver os artistas ocupados nas forjas, a soldar, ou a pintar, em ateliers provisórios instalados dentro de barracas de madeira e metal.
Este edifício, criado no início do século XX como armazém comercial no bairro judeu (actual Mitte), foi depois sala de exposições de indústria e tecnologia da AEG. Mais tarde foi ocupado pelo Partido dos Trabalhadores Nazis. Bombardeado durante a guerra, esteve praticamente abandonado ao seu destino durante a existência da República Democrática alemã. Houve planos de demolição.
Entretanto, veio a queda do muro e, em Fevereiro de 1990, vários artistas de Berlim Leste e Berlim Ocidental ocuparam a colossal ruína. Juntos constituíam uma associação chamada Tacheles - palavra iídiche que quer dizer "falar claro", "pôr em pratos limpos". A ocupação teve lugar mesmo a tempo de interpor um pedido para que a demolição fosse cancelada. Mais tarde, o edifício - em surpreendente boa forma, como demonstraram as peritagens técnicas - foi considerado ponto de interesse histórico.
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O Tacheles, nesta fase de ocupação artística dos anos 90, foi um dos centros da subcultura dinâmica da Berlim reunificada - pólo das tendências alternativas e experimentais que foram ao longo das décadas imagem de marca da cidade. Um local em que as filosofias de vida e a criação artística se contaminavam e se opunham a uma cultura e a um estilo de vida institucionalizados. Os artistas que ao longo dos anos por aqui passaram deixaram a sua marca no edifício - que se transformou, ele mesmo, numa espécie de obra de arte colectiva.
Kemal, artista a trabalhar no Tacheles, em BerlimKemal, um artista turco, é um dos que actualmente trabalham no Tacheles. Fez parte do primeiro grupo de ocupantes e é um dos co-fundadores da associação. Está sentado atrás de uma mesa a cortar pacientemente limões, na galeria que ocupa no rés-do-chão e que dá directamente para a Oranienburger Strasse. Actualmente, faz esculturas em metal - depois de ter passado pela pintura, pela cerâmica, e pela madeira. Está na Alemanha há 25 anos. Quando o muro caíu, veio para o Leste com outros artistas à procura de um lugar que pudessem ocupar. "Na altura havia muitos locais abandonados, foi só procurar. Não houve muitos problemas com as autoridades porque eles não conheciam isto das ocupações, e então não sabiam o que fazer. Toleraram-nos."
Atelier de Resa, artista a trabalhar no Tacheles, em Berlim.Hoje em dia há 30 a 50 artistas a trabalhar no Tacheles. Tal como Kemal, Resa, um artista iraniano há 12 anos no edifício, diz que "Consegue viver-se com o que se ganha aqui - não é muito, nem pouco." Resa diz que veio aqui parar "por acaso". Enquanto fala, não pára de dar os últimos retoques em duas pequeníssimas telas - uma com um seio direito, outra com um esquerdo - em pinceladas rápidas e breves, como as suas respostas. O capuz que lhe tapa praticamente o rosto parece combinar com a inscrição à entrada do atelier: "Ora et lavora".
O aspecto exterior do Tacheles pode inspirar pouca confiança a muitos visitantes. Não são apenas os anos de grafitti acumulados e sobrepostos, mas também as folhas secas e os detritos espalhados, as escadas sem iluminação, o pouco e gasto mobiliário dos ateliers, que parece saído também ele de um ferro velho. Mas este centro cultural é visitado por todo o tipo de pessoas, e de todas as idades, que o fotografam demoradamente. "Os visitantes são na maioria pessoas curiosas. Não há aqui outro sítio como este.", acrescenta Kemal. Escultura, pintura, colagens, instalações, teatro - mas também joalharia como a que habitualmente se encontra nas feiras - são as produções que mais se vêem nos vários pisos do Tacheles.
Com o passar dos anos, as divisões internas e os interesses imobiliários colocaram o Tacheles numa situação delicada - a rota da lógica pragmática do capitalismo. O terreno que o edifício ocupa está numa zona privilegiada da cidade, e permanece teimosamente em ruínas numa paisagem urbana que se renovou e modernizou implacavelmente desde a queda do muro.
No final dos anos 90 o Tacheles foi vendido a um grupo imobiiário. Mais tarde, este vendeu-o a um banco, de forma a saldar dívidas. Em 2002, a associação deixou de receber subsídios estatais, o que a colocou numa situação ainda mais difícil. Mas a indefinição quanto ao futuro do Tacheles permanece. Kemal e Resa são unânimes em dizer que não têm medo, mas a situação preocupa-os. "Querem pôr-nos fora daqui. Na Alemanha, nunca se sabe. O capitalismo protege o dinheiro e os direitos privados. Ninguém nos vai proteger.